domingo, 27 de março de 2011

O amor de uma vida

Ela não considerava indispensável vê-lo. Sentia-o nas linhas e entrelinhas que escrevia, conseguia inclusivamente cheirar o seu perfume, e sentir as mãos molhadas de suor na sua pele enquanto o rosto dele pairava na sua mente. Era mais bonito assim. Há histórias que começam do nada e acabam do nada. Aquela começou de tudo e ela esperava que acabasse com tudo de bom, e que aqueles anos de separação e saudade fossem compensados com um beijo fervoroso, cheio de desejo e amor. Cheio das duas almas que se encontraram no dia em que ele cruzou o seu olhar com o dela. Viveram longos meses mágicos, mas a separação emudeceu os seus corações e o sangue vivo que corria pelas veias e banhava os seus corpos tornou-se sombrio, como que alimentado por uma espécie de medicamento que não os deixava morrer, mas também não os curava. A cura era o reencontro, e o reencontro parecia tardar.
Para ela era certo ficar com ele. Para ele era certo ficar com ela. Por mais cartas que trocassem, tinham sempre mais algo para dizer, uma novidade para contar, viviam quase casados em mundos diferentes - ele na guerra e ela em Paris, junto da sua mãe. Ela tinha quase tudo. Ele não tinha quase nada. Mas juntos, juntos tinham o mundo, porque o mundo era o amor que os ligava.
O que fariam se uma pessoa viesse a mudar tudo? O que fariam com uma carta falsa? Falsa como a que Matilde recebeu de Tiago. A letra era igual. A assinatura era a mesma. Apenas as palavras eram diferentes. Esta carta dizia que tinha encontrado alguém quando voltou da Alemanha para Portugal e que estes anos de espera lhe foram destruindo o coração. Por sinal, esta moça, a Ana, tinha aquecido o seu corpo naquele dia de vento frio. A verdade é que o coração sempre teve um leve cobertor que o cobrisse nos dias de neve, de chuva, de trovoada, quando mais nada o animava. Mas o seu corpo, esse permaneceu gelado e embebido em vazio. Foram muitos anos de espera, muitos anos de tentativas para, no final, não conseguir aguentar o facto de não a ter. Decidiu seguir e esperava que ela o compreendesse. Quando acabou de ler a carta que abalaria com a sua vida, Matilde chorou, chorou muito, mas acabou por esboçar um sorriso pensando que se ele estava bem, ela estaria bem. Afinal de contas, apesar de não sentir o mesmo, tudo o que ele disse fez sentido... Seguiu em frente, e seguiu com o tal Jean que sempre a apoiou. Um rapaz bem parecido, de boas famílias, influente e que a amava acima de tudo. Ela convenceu-se de que Tiago estaria bem ao lado de Ana e casou-se com Jean. Mudou de casa passado pouco tempo, para um apartamento nos arredores de Paris. Não se sabia bem porquê, nunca quis constituir família com o homem com quem casou.
Tiago permaneceu intacto, esperando a resposta a uma carta enviada há mais de três anos atrás. Não percebia o porquê de ela ter deixado de lhe responder, de tudo o que haviam construído ter sido deitado por terra, mas permaneceu ali, sozinho e acorrentado ao amor da sua vida. Ia pedir informações aos correios, enviava cartas para todos os locais e mais alguns de Paris com o fim de encontrar Matilde, mas nunca mais obteve notícias dela. Desesperado, juntou dinheiro para a ir ver a Paris. Era um homem pobre e humilde, que teve de trabalhar dia e noite para conseguir amealhar uns escudos para ir ter com ela à grande cidade. Mas conseguiu, fê-lo e encontrou-a. Encontrou-a sentada algures num café de uma esplanada com um homem requintado. Exitou, mas conseguiu olhar para o anelar da mão esquerda, onde uma grossa aliança de ouro branco com um diamante reluzia brilhante naquele dia de sol. A réstia dúvida foi entretanto confirmada com um beijo caloroso entre os dois. Matilde tinha casado, tinha esquecido todas as cartas e promessas, e beijos telepáticos trocados, e até aquela noite na qual fundiram as suas almas ainda em jovens. Matilde, a mulher da vida dele, estava com outro homem. Quanto mais pensava, mais farpas pareciam espetar-se no seu coração, mais o sangue gelava e mais o corpo se retorcia de ódio, raiva, mas sobretudo de mágoa por ter perdido aquela que imaginava como futura mulher.
Não se conteve e num acto irreflectido dirigiu-se para ela. Hesitou em tocar-lhe no braço, eventualmente notaria que estava alguém atrás de si e voltar-se-ia para trás. Assim fez.
Matilde petrificou quando o viu, mas rapidamente retomou um sorriso e perguntou calmamente:
- Por aqui... Tu... - balbuciava - Vens com a Ana?
Reparou nos olhos dele cheios de água e num lacrimejar quase sufocante.
- Ana? - indagou.
- A tua mulher.
Tiago não percebeu a pergunta e disse que tinha estado todo este tempo à sua espera, mesmo depois de não ter notícias suas durante mais de três anos e que agora a encontrava ali, casada.
Jean não interveio, ficando perplexo com a atitude dele. Com o facto de ter esperado por ela durante tanto tempo e, por fim, admitiu que fora ele quem escreveu a fatídica carta e quem manipulou a chegada de todas as outras que se seguiram.
Tiago e Matilde não disseram nada. Limitaram-se a sorrir, como que aliviados e libertos ao fim de tantos anos de ausência. Limitaram-se a sorrir. Um sorriso que disse tudo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei